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O mal está em nós; o bem também

Somos os seres com maior capacidade intelectual no planeta. A enorme quantidade de sulcos no córtex, a parte mais externa do nosso encéfalo, acomoda uma quantidade enorme de neurônios, que por sua vez nos permitem uma ampla percepção e resposta aos estímulos, de maneira muito mais complexa e intercomunicada do que nos demais animais. Entretanto, a “base” do cérebro animal, denominado por muitos autores de cérebro reptiliano, está obviamente lá, mantendo nossos instintos a são e salvo e ativos. E, em carona com a desculpa instintiva, sempre surgem desejos e comportamentos vis, que podem ser prejudiciais, insensíveis e irracionais.

Em uma viagem recente, entrei em um estabelecimento e qual não foi minha surpresa em encontrar uma bela pomba doméstica em um ninho improvisado em cima do balcão de atendimento. Ela, imóvel, chocava, segundo a proprietária, dois ovos recém postos. Estava aconchegada e muito confortável em uma caixa de papelão recoberta de um pedaço de tecido macio. A temperatura já estava bem amena, então acredito que este pequeno gesto da proprietária tenha sido muito bem recebido pela ave. Após adquirir o serviço do qual precisava, não resisti e comecei a indagar sobre a pomba. A proprietária relatou que a tinha há quase 7 anos, e que ela sempre coloca ovos no seu ninho improvisado; depois, desiste de chocar os ovos, não galados, e volta à sua rotina: anda por todo o estabelecimento; tem livre acesso à casa dos donos, que fica nos fundos; e adora ficar na sala enquanto eles assistem TV. O gato da casa, ainda, se apegou à pomba ao ponto de defende-la com bastante energia de qualquer ser estranho que tente se aproximar. “Ela já se acostumou tanto conosco e com cada cômodo, que mal se nota que é cega dos dois olhos”.

Neste momento me aproximei com cuidado da caixa, para inquietação e visível incômodo da penosa. Ambos os olhos estavam severamente machucados. Apesar de me afastar ao perceber a agitação do animal, ela não se acalmava. Mas bastou o tom de voz do proprietário, que acabara de sair dos fundos, para ela se acomodar novamente, tranquilamente, em seu ninho. Não precisei dizer mais do que minha feição de dúvida para que ambos me explicassem o resumo da ópera. Sete anos antes, a loja estava aberta em um sábado de manhã quando um grupo de alguns meninos pequenos, de 5 a 6 anos, começou a agressivamente atacar uma pomba, que buscava por comida na calçada. Apesar de os proprietários da loja terem afastado as crianças quase que imediatamente, quando se aproximaram do animal, ele já estava desacordado e perdia muito sangue. A pomba foi, então, levada ao veterinário e teve todos os cuidados necessários, mas os olhos estavam irreversivelmente danificados. Sem condições de viver na natureza, foi-lhe cedida uma caixinha de papelão para dormir, na bancada da loja, assim como água e comida. A pomba nunca foi embora. E, como já evidenciei acima, demonstra apreciar o acolhimento que teve e se sente confortavelmente em casa.


Há dois lados que gostaria de evidenciar nessa pequena história. O primeiro é o da violência gratuita. Esta se faz infelizmente frequente em nosso cotidiano, seja contra pombos ou outro animal, seja contra pessoas. É uma maldade infundada, que funciona como válvula de escape de um agressor que não enxerga o agredido, já que lhe é indiferente quem ele vai machucar. Escrevo isso com pesar, mas tenho certeza de que cada pessoa que venha a ler este texto conhece ao menos uma dessas pessoas, explosivas, agressivas, que precisam da briga como precisam do ar, independente do motivo que inventem para seus atos, injustificáveis. O mal se espalha como um câncer, por mais triste que isso soe.


Entretanto, há um segundo lado da história, muito mais brilhante e próspero. Se houve um grupo de crianças perversas e mal-intencionadas, explosivas e de comportamento infundado e injustificável, houve também um casal pronto, que não necessariamente amava pombos desde os anos 70, mas que se mobilizou frente a um ato de covardia, tomou a frente para interrompê-lo, e se esforçou para remediá-lo. A pomba, cega, perdeu com os olhos a chance de viver em natureza; mas ganhou um lar cheio de carinho e atenção. Se há, de fato, tanto mal no mundo, há em contrapartida muita bondade e benevolência. É tudo parte do ciclo natural das coisas, há sempre duas forças opostas que se contrabalançam.


Escrevo este texto porque nos acostumamos a ver os meninos que chutam animais na calçada e a julgá-los; filosofar se os pais não os estão educando adequadamente; indagar o porquê de tal atitude estúpida em pleno raiar do dia; questionar se eles não sentem remorso e culpa por fragilizar uma criatura indefesa. Mas frequentemente ações como a do casal que resgatou e cuida até hoje da pomba passam despercebidas. Ou pior, neste caso, geram comentários como “mas salvar um pombo? Pra quê?”. Fatos ruins tendem a ter maior repercussão no nosso cotidiano, por causarem maior impacto. Por mais que tenhamos tido um dia com pequenos acontecimentos positivos, basta um único negativo para classificarmos, automaticamente, o dia como um dia ruim.


Apesar de ser muito mais comum ouvirmos alguém desabafar um “está tudo perdido” do que um “obrigado”, bem e mal sempre estiveram no mundo, e continuará a ser assim, ao menos por um bom período. Que saibamos dar a devida importância a cada um, sem supervalorizar ou subestimar um lado ou outro. E que enxerguemos que o bem, independente do tamanho e de para quem é efetivado, é bem e isso basta.

Frente a um mundo ainda com tanta escuridão – e também, tanta luz –, que escolhamos enxergar a luz.

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